A Assembleia Geral da ONU reconheceu em 2010 que “o direito a água potável própria e de qualidade e a instalações sanitárias é um direito do homem, indispensável para o pleno gozo do direito à vida”. O direito humano à água e ao saneamento determina que todos devem ter direito à água e ao esgotamento sanitário, financeiramente acessível, aceitável e de qualidade para todos, sem qualquer tipo de discriminação. Também obriga os Estados a eliminarem progressivamente as desigualdades de acesso tanto à água como ao esgoto – desigualdades entre populações nas zonas rurais ou urbanas, formais ou informais, ricas ou pobres.
No Brasil dados do Ministério das Cidades indicam que cerca de 35 milhões de brasileiros não são atendidos com abastecimento de água potável, mais da metade da população não tem acesso à coleta de esgoto, e apenas 39% de todo o esgoto gerado é tratado. Aproximadamente 70% da população, que compõem o déficit de acesso ao abastecimento de água, possuem renda domiciliar mensal de até ½ salário mínimo por morador, ou seja, possuem baixa capacidade de pagamento, o que coloca em pauta o tema do saneamento financeiramente acessível.
Desde 2007, quando foi criado o Ministério das Cidades, pode-se identificar avanços importantes na busca de diminuir o déficit já crônico em saneamento e caminhar alguns passos no sentido de garantir o acesso a esses serviços como direito social. Nesse sentido destacamos: dentro do Ministério, a criação da Secretaria de Saneamento; as Conferências das Cidades e o Conselho Nacional das Cidades, que deram à política urbana uma base de participação e controle social.
Houve também, até 2014, uma progressiva ampliação de recursos para o setor, sobretudo a partir do PAC 1 e PAC 2; a instituição de um marco regulatório (Lei 11.445/2007 e seu decreto de regulamentação) e de um Plano Nacional para o setor, o PLANSAB, construído com amplo debate popular, legitimado pelos Conselhos Nacionais das Cidades, de Saúde e de Meio Ambiente, e aprovado por decreto presidencial em novembro de 2013.
Esse marco legal e institucional traz aspectos essenciais para que a gestão dos serviços seja pautada por uma visão de saneamento como direito de cidadania: a) articulação da política de saneamento com as políticas de desenvolvimento urbano e regional, de habitação, de combate à pobreza e de sua erradicação, de proteção ambiental, de promoção da saúde; e b) a transparência das ações, baseada em sistemas de informações e processos decisórios participativos institucionalizados.
A Lei 11.445/2007 reforça a necessidade de planejamento para o saneamento, através da obrigatoriedade de planos municipais de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, drenagem e manejo de águas pluviais e limpeza urbana, e manejo de resíduos sólidos. Esses planos são obrigatórios para que possam ser estabelecidos contratos de delegação da prestação de serviços e para que possam ser acessados recursos do governo federal (OGU, FGTS e FAT), sendo que o prazo final para sua elaboração termina em 2017. A Lei reforça também a participação e o controle social, através de diferentes mecanismos como: audiências públicas, definição de conselho municipal responsável pelo acompanhamento e fiscalização da política de saneamento, sendo que a definição desse conselho também é condição para que que possam ser acessados recursos do governo federal.
O marco legal introduz também a obrigatoriedade da regulação da prestação dos serviços de saneamento, visando a garantia do cumprimento das condições e metas estabelecidas nos contratos, a prevenção e a repressão ao abuso do poder econômico, reconhecendo que os serviços de saneamento são prestados em caráter de monopólio, o que significa que os usuários estão submetidos às atividades de um único prestador.
A lei articula ainda a necessidade de sustentabilidade econômica, diretamente vinculada à instituição das tarifas. Esses dois aspectos centrais devem, evidentemente, ser equacionados na perspectiva do saneamento como um direito, sobretudo considerando que no Brasil as desigualdades de acesso são ainda marcantes e são os mais pobres que não tem acesso ao saneamento. A lei indica que a sustentabilidade econômica não pode prescindir da ampliação do acesso dos cidadãos e localidades de baixa renda aos serviços e da prioridade para atendimento das funções essenciais relacionadas à saúde pública.
O modelo tarifário, que está na base da sustentabilidade econômica, deve garantir uma quantidade mínima de consumo ou de utilização do serviço, visando a garantia de objetivos sociais, como a preservação da saúde pública, a partir da avaliação da capacidade de pagamento dos consumidores. Para isso, podem e devem ser adotados subsídios necessários ao atendimento de usuários e localidades de baixa renda.
Diante da crise financeira do Estado do Rio de Janeiro, e das perspectivas de redução de aporte de recursos federais para o setor, decorrente da política de redução de gastos públicos anunciada pelo governo Temer, surgem discussões sobre novos formatos de gestão a serem adotados no estado, articulados no âmbito do BNDES e do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) da Presidência; esses são orientados, sobretudo, pela perspectiva de aumento da participação privada na prestação dos serviços de saneamento.
Os modelos propostos ainda estão indefinidos e seria, portanto, prematuro avançar uma crítica ao que está sendo proposto, pautada apenas pelo que vem sendo divulgado recentemente na imprensa. Contudo, alguns aspectos para reflexão precisam ser ressaltados:
Quem entende o saneamento como direito de cidadania não pode escolher o modelo de gestão com base unicamente em uma solução para melhorar a situação dos cofres públicos (concessão onerosa na qual a participação privada se faz mediante um “pagamento” ao estado/ município pelo direito de prestar o serviço, ou outras formas nas quais o estado será compensado financeiramente por repassar para a iniciativa privada a prestação desse serviço público essencial).
Quem entende o saneamento como direito de cidadania não pode pensar em modificar um modelo de gestão pública sem um amplo debate com a sociedade, considerando os princípios de participação e controle social presentes na Lei Nacional (11.445/2007), o caráter monopolístico dos serviços, e os impactos desse mesmos na qualidade de vida dos cidadãos, na saúde pública e na qualidade do meio ambiente.
Quem entende o saneamento como direito de cidadania precisa adotar modos de gestão transparentes, cujas informações relativas à prestação dos serviços estejam disponíveis para consulta pública na internet, tais como: áreas com e sem acesso aos serviços; indicadores de qualidade dos serviços prestados; contratos de programa ou de concessão, com metas claras a serem atendidas no curto, médio e longo prazo; modelos tarifários, incluindo formas de subsídios e tarifas sociais, e detalhamento do tratamento a ser dado àqueles que não tem capacidade de pagar pelos serviços.
Infelizmente, no debate atual sobre as mudanças na prestação pela CEDAE e sobre a ampliação da participação privada, essas questões ainda não foram colocadas. É evidente que a gestão implementada pela CEDAE não é eficiente, nem transparente. No caso específico do Rio de Janeiro, e particularmente da Região Metropolitana, esse aspecto é central: existem bairros inteiros de municípios da Baixada Fluminense, como Queimados e Duque de Caxias, ou de São Gonçalo, habitados por população de baixa renda, que não têm acesso regular à água, e onde a rede de coleta de esgoto é inexistente. Estamos, portanto, no nosso estado diante de uma situação que fere os princípios básicos do direito humano à água.
Contudo, não é certo que o aumento da participação privada trará melhorias nesses aspectos. Algumas empresas privadas que hoje atuam no estado não têm sua gestão pautada por princípios de transparência; o controle social do saneamento no estado é inexistente. A Agenersa, responsável pela regulação do saneamento, dispõe de poucos quadros qualificados e há muito tempo não realiza concursos públicos para melhorar essa situação (em 2015 a agência contava com 80 funcionários, sendo somente sete concursados).
As mudanças no modo de gestão e a ampliação da participação privada precisaria passar por um amplo debate público, que envolvesse entidades representantes dos usuários, entidades que reúnem categorias profissionais, enfim, a sociedade civil, como um todo, que ainda não foi convidada a participar das discussões, fechadas dentro de modelagens construídas pelo governo do estado e pelo BNDES, que parece ter abandonado o componente “social” das suas funções.
A privatização não é necessariamente a solução para os problemas que enfrentamos. Na Europa cidades como Paris re-municipalizaram a gestão dos serviços; nas democracias mais avançadas essas mudanças passam inclusive por plebiscitos públicos. No Brasil existem serviços públicos municipais que estão no topo da lista dos melhores prestadores, mas essa informação é pouco divulgada pela mídia em geral. Em Uberlândia, Minas Gerais, com aproximadamente 600 mil habitantes, o DMAE, serviço público municipal, atende com abastecimento de água 100% da população; coleta 97% dos esgotos, e trata 100% dos esgotos coletados. No modelo tarifário adotado, as famílias com renda até dois salários mínimos, residentes em domicílio na condição de locatárias, comodatárias ou famílias proprietárias de apenas um imóvel tem isenção total dentro de uma faixa de consumo mensal até 20 mil litros.
No cenário de déficit concentrado na população com baixa capacidade de pagamento e de frágil capacidade de regulação, que caracteriza o estado do Rio de Janeiro, a concessão privada não parece ser um alternativa consonante com a perspectiva de saneamento como direito. Não sendo a concessão privada necessariamente a melhor opção, se estamos efetivamente em um contexto democrático, o governo estadual precisa colocar suas propostas de mudança na gestão do saneamento para o debate público. O caráter monopolístico desse serviço torna os cidadãos reféns do prestador; a sua essencialidade faz com que, qualquer questão que comprometa o acesso aos serviços, tenha consequências diretas na qualidade de vida e na saúde da população. O debate público é, portanto, imprescindível.
É indiscutível que o Estado do Rio precisa garantir e aumentar seus investimentos em saneamento, mesmo em contexto de “crise econômica”. É preciso que seja construída uma visão de saneamento não como gasto público, mas como investimento na saúde da população e na qualidade ambiental. Essa é uma opção política, que deve ser cobrada de nossos governantes, tanto no nível estadual como no nível municipal.
Em um cenário de pouca disponibilidade de recursos para investimentos, novos caminhos precisam ser considerados: a ampliação da capacidade fiscal e reavaliação das renúncias fiscais concedidas pelo estado; a revisão da política de terceirizações na prestação de determinados serviços públicos, com custos elevados e com resultados no mínimo discutíveis; a pressão junto ao governo federal pela manutenção dos patamares de investimento no setor; a ampliação das receitas da CEDAE, através de maior controle e revisão das tarifas aplicadas às empresas que usam água como insumo; e a definição de um Fundo Estadual com teria com objetivo específico a universalização do saneamento. O FECAM, que em determinado momento cumpriu essa função, teve sua capacidade de arrecadação comprometida pela crise do petróleo, mas pode e deve ser reformulado e alimentado por outras fontes, reservando seus recursos exclusivamente para saneamento.
São alguns caminhos para ampliar a capacidade de investimentos públicos, já indicados por quem estuda e analisa a “crise econômica” do Estado do Rio de Janeiro, que não pode, de forma nenhuma, ser argumento para a imposição de um novo de modelo de gestão de saneamento formulado nos gabinetes de governo de forma autoritária, passando por cima dos princípios que orientam a Lei 11.445/2007 e que buscam garantir o saneamento como direito.
Fonte: FNU